Como a China reinventou a cópia
Talvez seja um grande equívoco achar que, nos últimos anos, "a China só copiou e não criou nada de novo".
O pensamento acima foi, por muito tempo, a avaliação padrão de boa parte das análises sobre a tecnologia e inovação deste país asiático. Mas, basta um olhar minimamente atento para perceber que essa percepção está cada vez mais desconectada da realidade.
A China foi apontada como líder em 37 das 44 tecnologias críticas mapeadas pelo Australian Strategic Policy Institute em um estudo realizado em 2023. De tecnologia espacial a IA, de biotecnologia a energia verde, as empresas e instituições chinesas ditam o ritmo da inovação em diversas frentes.
O paradoxo é esse: a China não deixou de copiar para inovar, mas sempre entendeu que inovação não exige algo completamente inédito para ter valor transformador. Isso desafia nossa compreensão ocidental de progresso.
Enquanto o Ocidente romantiza o gênio isolado e a descoberta revolucionária, na China a abordagem é mais pragmática. A absorção, adaptação e recombinação viraram método, processo e - por que não dizer? - estratégia nacional.
Nesta edição da Decode China, mostramos raízes culturais do ato de copiar na China e revisitamos o “mito da cópia chinesa” aplicado ao processo de inovação a partir de três perspectivas: o tempo como ferramenta estratégica, a inovação como ecossistema coletivo e a absorção como prática política.
Em Dezembro de 2007, o Museu de Etnologia de Hamburgo fechou sua exposição que continha oito Terracota Warriors, conhecidos guerreiros dos mausoléus de Xi’an, ao descobrir que se tratavam de cópias e não das peças originais com mais de 2.000 anos. Os “Guerreiros de Terracota” são os artefatos culturais mais conhecidos da China no Ocidente e a produção de réplicas (e não de falsificações) foi oficialmente autorizada e seguiu em paralelo desde o início das escavações.
Para os chineses, as reproduções exatas tem o mesmo valor que do original e é comum que cópias sejam enviadas para exposições ao exterior, em vez dos originais. Por vezes, a rejeição destas obras pelo Ocidente (que tem uma interpretação diferente sobre o valor das artes) é recebida como insulto pelos chineses e gera um grande mal estar.
Curiosidade: No Ocidente, as cópias das obras de arte não tem autoria e nem possuem valor relevante. Mas isso é diferente na China. Os artistas chineses costumam adicionar selos e inscrições para demonstrar a autoria, mesmo para as cópias de obras de artes. Os aspectos formais da cópia são analisados na avaliação das cópias e elas podem custar mais do que os próprios originais, quando o nome do artista copiador é conhecido.
Muitos artistas renomados se dedicam a fazer cópias (releituras) de obras tradicionais, para levar adiante o “traço real” de velhos mestres.
[o ato de copiar na cultura chinesa]
Questões de autenticidade tendem a confundir e levar ao uso de forma indiscriminada palavras como “cópia”, “reprodução”, “réplica", “imitação” e “falsificação”. Mas há uma diferença fundamental entre as cópias e as falsificações: enquanto as falsificações procuram enganar, as cópias não escondem que são cópias e homenageiam o original, potencialmente agregando valor e trazendo novas possibilidades a ele.
Para os chineses a distinção entre esses dois conceitos é muito clara. Existem as imitações ou falsificações (fangzhipin - 仿制品) que são nitidamente diferentes do original, geralmente produzidas para o comércio, e existem as cópias (fuzhipin - 複制品), que são reproduções exatas do original e que, na concepção chinesa, não são essencialmente diferentes do original.
Na cultura chinesa, não só a cópia tem um outro valor, mas o ato de copiar tem uma outra perspectiva e não tem uma conotação negativa.
Diversas pedras fundamentais da sociedade chinesa estão alicerçadas sobre a “arte da duplicação”, que envolve a memorização, uniformidade e repetição, não só de conhecimento, mas de comportamento, de rituais e tradições. Seja na relação pai e filho, mestre e aluno, chefe e subordinado, ou Estado e indivíduo, com muita frequência, copiar é a posição padrão. Muitas vezes, pelo olhar chinês, copiar não é apenas sensato, mas um símbolo de respeito pela autoridade.
Agora te convidamos a refletir: como essa ideia do ato de copiar gera diferentes efeitos no processo de inovação na China?
[o tempo como estratégia]
No pensamento chinês tradicional, o tempo não é uma linha reta. Ele não avança destruindo o que veio antes, como no imaginário ocidental moderno, mas se move em ciclos e fluxos, que transformam sem romper. Essa visão, ancorada no Tao, ajuda a entender a visão chinesa sobre porque a ideia de ‘ser a primeira a inventar' não faz tanto sentido assim. Como na natureza, repetições sucessivas com cirúrgicas variações também geram novidades, sem qualquer tipo de genialidade desruptiva.
Pegando um caso bem prático: os trens de alta velocidade. Esse exemplo nos ensina que a China começou importando tecnologias do Japão e da Alemanha, para então reformular os sistemas e criar uma malha ferroviária mais barata, veloz e eficiente — que agora é exportada para a Europa.
O mesmo se aplica à BYD, que iniciou como seguidora da Tesla e hoje lidera globalmente o mercado de veículos elétricos. Também se aplica ao TikTok (Douyin), que não inventou os vídeos curtos, mas redefiniu sua lógica e influência cultural.
Todos esses casos revelam um padrão: a cópia não é o destino final, mas o ponto de partida de um ciclo mais longo. Copiar, nesse contexto, de forma alguma é sinal de fraqueza. Ao contrário, na cultura chinesa, é sinal de reconhecimento de valor. Copiar faz parte do processo de aprendizagem e absorção de conhecimento. É sobre observar, lapidar e aplicar de uma forma melhorada, no tempo certo, criando algo novo.
[inovação com menos ego]
A China entende a inovação de modo diferente: menos como fruto da genialidade individual e mais como expressão de um ecossistema coordenado. Ao contrário do Vale do Silício, por exemplo, onde o criador é celebridade e a patente é troféu, o modelo chinês aposta na inteligência coletiva, muitas vezes invisível. Esse aspecto é frequentemente esquecido em análises externas.
O conceito de shanzhai (山寨), frequentemente traduzido de forma redutora como “pirataria”, é na verdade um campo de experimentação e melhoria contínua. Hoje representa uma abordagem única de desenvolvimento tecnológico e industrial, combinando cópia, adaptação e melhoria incremental. O que era um termo usado para designar produtos que imitavam grandes marcas, passou também a designar formas criativas de adaptação popular.
Em seu livro “Shanzhai: Desconstrução em Chinês”, o filósofo coreano Byung-Chul Han argumenta que “no pensamento tradicional chinês, a cópia não é uma falsificação do original, mas uma de suas muitas manifestações possíveis”.
Na China, as empresas “shanzhai” produzem cópias criativas (e não mera imitações) e reelaborações rápidas de produtos, adaptados às demandas locais e tendências de mercado, com base em informações compartilhadas por um ecossistema colaborativo de fornecedores, fabricantes e designers - outra particularidade do mercado chinês.
[absorver conhecimento como política]
Desde as reformas de Deng Xiaoping, a China estruturou um modelo sistemático de absorção tecnológica. Por meio de joint ventures obrigatórias, formação técnica massiva e investimento em engenharia reversa, o país construiu sua soberania industrial com base no aprendizado constante.
O plano “Made in China 2025”, lançado em 2015, consolidou essa estratégia. Inspirado no desenvolvimento digital alemão (indústria 4.0), ele estabeleceu metas para reduzir a dependência de componentes estrangeiros em setores críticos. O 14º Plano Quinquenal (2021–2025) aprofunda essa direção, declarando que “a inovação será o núcleo da modernização nacional, e a ciência e tecnologia independentes serão a base do desenvolvimento sustentável”.
A China construiu infraestruturas aptas a aprenderem e absorverem conhecimento ligado a tecnologia e inovação. Cidades como Suzhou se tornaram modelos do tripé universidade–empresa–governo, com parques industriais, zonas de experimentação regulatória e sistemas de financiamento integrados. Como afirma a pesquisadora Zhou Yu em seu livro China as an Innovation Nation, o diferencial não foi apenas o acesso à tecnologia estrangeira, mas sua incorporação ao tecido produtivo local e sua consolidação como capacidade nacional.

[a cópia como disputa simbólica]
A verdadeira disputa por trás do clichê da “cópia chinesa” não é técnica. É simbólica. Está em quem tem o poder de definir o que é legítimo, o que conta como inovação e quem pode se apropriar de saberes e tecnologias sem ser acusado de plágio.
Os Estados Unidos, por exemplo, importaram sistematicamente tecnologias da Europa durante a Revolução Industrial tardia - da indústria têxtil britânica aos motores alemães - e, com o tempo, consolidaram um discurso de liderança técnica. No pós-guerra, o Japão fez o mesmo com tecnologias ocidentais: reengenharia, adaptação e melhoria contínua foram os pilares do seu modelo de crescimento. O rádio, o carro, o semicondutor - todos redesenhados e, depois, exportados como produtos “japoneses”.
No entanto, quando a China começou a adotar estratégias semelhantes de absorção e transformação, o enquadramento foi outro: a ela foi reservado o rótulo de imitadora sem criatividade, condenada à repetição servil. Isso nos revela que a própria ideia de inovação - quem pode inovar, em que condições, e com que legitimidade - é atravessada por construções culturais e disputas geopolíticas.
Ao transformar absorção em potência, a China não apenas desafia um modelo econômico, ela também desloca um imaginário.
[e o Brasil com isso?]
O Brasil não carece de criatividade. Mas, uma das coisas que nos falta é uma estratégia institucional para reconhecer, canalizar e acumular nossa inteligência e espírito criador. Nossa cultura é rica em soluções improvisadas, adaptações criativas e formas populares de inovação, como a famosa gambiarra. Ainda, essas práticas raramente são tratadas como potência - e quase nunca estruturadas como sistema.
Seguimos investindo em narrativas - que até agora foram as dominantes - que glorificam o criador genial, a startup que vira unicórnio. Enquanto isso, deixamos de criar mecanismos de absorção para os saberes que já existem nas margens, nos territórios, nas periferias produtivas. A diferença não está apenas na quantidade de recursos aplicados, mas também para onde direcionamos nosso olhar.
Como propõe a economista Mariana Mazzucato, mais importante do que investir em inovação é definir com clareza para onde se quer inovar. No caso brasileiro, talvez o primeiro passo seja justamente deixar de lado a obsessão pelo novo inédito e voltar o olhar para aquilo que já está em curso, mas que ainda carece de reconhecimento, estrutura e continuidade. Valorizar a adaptação como inteligência e quem sabe criar mecanismos que deem forma e escala ao nosso talento para o improviso.
Uma última curiosidade: 7.000 estudantes estavam disputando 30 vagas na Shandong University of Arts and Design. Todos precisavam fazer o mesmo desenho e a mesma pintura.